4 de novembro de 2014

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Novembro chegou e com ele algumas tímidas e escuras nuvens quase derramadeiras, dando ares de prenúncio da quadra invernosa em 2015. Por isso peguei da pena para fazer algumas ponderações. Ano vindouro completa um século da famigerada “Seca do XV”, sucedida de três consecutivas estiagens (1912, 1913 e 1914), se consolidando em 1915, assolando e devastando sem dor e sem piedade, a terra seca cearense, matando de fome e de sede animais silvestres, domésticos e de abate, e por incrível que pareça, até seres humanos. Não por acaso os urubus, dotados de aguçado olfato, se enfartaram demasiadamente ao participarem de um assombroso banquete canibal na nossa rica caatinga, que exalava pelos ares muita catinga, ocasião que a fauna regional foi comprometida pela falta de chuvas e, consequentemente, de alimentos. Foi um Deus nos acuda, de um povo pobre e sofredor, onde a peste reinava endêmica, sem o amparo das atuais políticas públicas sociais de cunho assistencialista. Enquanto a seca e a fome prosseguiam monótonas, com seu cortejo de horrores, os sobreviventes, em condições adversas, aguardavam da soberana misericórdia divina, a salvação – eterna ou terrena, tanto faz como tanto fez. Partiam do princípio de que “pouco com Deus é muito e muito sem Deus é nada”. E se alimentavam espiritualmente com as boas-novas da região do Cariri, de um santo padre – Padim Cirço (*24/03/1844 +20/07/1934) até então com 71 anos de idade, que na medida do possível, fazia o possível e até o impossível (relevem a redundância), para amenizar o sofrimento dos seus miseráveis irmãos cearenses. E São Pedro que teimava em não abri as torneiras do céu. Por estas bandas, nos rios Raiz do Canto e Contendas, se encontrava água com cerca de 10 metros de profundidade abaixo dos seus leitos, conquanto, o açude Acarau-Mirim construído de 1901 a 1907, agonizava com um minguado d’água na sua bacia enlameada. Os problemas apareciam em cardume e nas zonas urbanas se formavam grandes ajuntamentos populares, em vias de iminentes saques, constituídos de desnutridos flagelados à procura desesperada de alimentos para sua própria sobrevivência, que, por medida de prudência, eram doados, feito esmolas, pelos governos Federal e Estadual, entretanto, de forma escassa e inconstante. Meu Deus do céu! Eram crianças, jovens, adultos e idosos, que em fila indiana, pacientemente imploravam aos anjos do céu, para iluminar os irmãos de boa vontade aqui na terra, por uma migalha de pão ou uma mão cheia de farinha. Nos dias de hoje ainda é motivo de chacota alguém se dirigir a outrem de peso bem abaixo do padrão normal do brasileiro e alcunhá-lo, justificadamente, de “Seca do 15”. A vã sabedoria popular erroneamente prediz que o planeta terra passa por um ciclo de transformação a cada cem anos. A se confirmar sinistra profecia, as conseqüências seriam extremamente desastrosas. Curioso observar que em 2012, 2013 e 2014 os registros dos índices pluviométricos foram esporádicos e irregulares, portanto, não tivemos um inverno propriamente dito, a exemplo de exatamente 100 anos atrás. A transposição das águas do rio São Francisco, cujas obras andam a passos pré-históricos (de tartaruga ou do bicho preguiça), é uma promessa que remonta ao século XIX – Brasil Império. Quiçá, não estejamos na hora de pensar na execução de um grande projeto nacional de “Integração das Águas”, com a possibilidade de transpor por aqueduto o líquido precioso do maior rio do mundo em volume de água – o Amazonas, o suficiente para abastecer (sem impacto ambiental), duas conexões antagônicas: uma em direção a bacia hidrográfica do nordeste (para socorrer e alimentar o rio São Francisco) e a outra; em direção a bacia hidrográfica da região sudeste. Mas alguém deve indagar: “isto é um absurdo!”, como, com certeza, há duzentos anos (sem os recursos da tecnologia atual), muitas indagações foram classificadas de absurdas em face do projeto original de transposição do “Velho Chico”, que, diga-se de passagem, está com uma mão na vela e a outra na cova. Neste mundo globalizado com a exploração do capitalismo selvagem, a continuar com as queimadas, desmatamento, poluição e desertificação num ritmo acelerado e descontrolado, esta “absurda idéia” poderá, sim, ser possível, ante a deflagração de uma terceira grande guerra mundial pela posse da água. Atualmente assistimos atônicos pela TV pública aberta, a situação caótica e preocupante por que passam os habitantes das regiões mais densamente povoadas do Brasil (sul e sudeste), em face de uma crise hídrica jamais vista, preocupados com o uso consciente da água tendo em vista a sua escassez. E o que tudo isso tem a ver com o título dessa crônica? Registrei apenas uma lembrança triste de um passado recente, em contraponto com uma alerta de um futuro breve. Mas vamos ao que nos interessa. José Mendes de Albuquerque (Zé Mendes) foi um homem predestinado e por que não dizer, iluminado, que chorou na barriga materna para vir precocemente ao mundo. Nascido no crepúsculo do século XIX (1.898) nos deixou em 1991 aos 93 anos, ainda lúcido, deitado no seu leito de morte (uma rede de tucum) que, algumas horas antes de partir, relembrou aos parentes próximos o seu desejo de se despedir da vida terrena, na sua própria residência. É que ao longo de nove décadas de uma vida simples e humilde, esbanjava saúde e nunca se queixou a algum médico ou se internou em um hospital. Muito conhecidamente no seio da sociedade massapeense, Zé Mendes teve uma vida pautada nos bons costumes, na moral e na decência, e pai dedicado que foi, viveu para a família, esposa e filhos. Além de lidar com a terra, ele desenvolveu um ofício natural, um dom de Deus – o de curandeiro/rezador/benzedeiro. Com folhas de “arruda” e de “comigo ninguém pode” Zé Mendes curava quebranto, espinhela caída, corpo esmorecido, sapinho na língua, pano branco, caspa e enfraquecido - olho gordo, coqueluche, ferida braba, impinja, furúnculo e estalecido - caganeira, lombriga, calor de figo, dodói, verruga, unha encravada, brotoeja, e frieira – difuluço, engasgo de espinha de peixe, mordidas de cobra venenosa e de cachorro doido, bexiga frouxa e surto de soluço – macumba, piolho, picada de escorpião, gonorréia, chato, moleza no meio das pernas e caxumba – paratifo e até tifo (é o novo!) Uma vez consultado por ele, que, diga-se de passagem, não cobrava dinheiro e nem aceitava qualquer tipo de doação, não era mais um problema, e sim, a solução. Ele aliviava até dor de corno, e reatava briga de casal, separação! Eu mesmo fui seu paciente com sintomas de torcicolo, na véspera de participar de uma festa na nossa então pacata Massapê. Ora, foi tiro & queda, ou melhor, reza & cura. Mesmo dotado de uma boa dose de ceticismo, algumas horas após à sua milagrosa oração, fiquei completamente curado. De aparência física frágil, o carismático Zé Mendes era um ser dotado de rara sensibilidade humanística e, ostentava como marca pessoal, uma corcunda disforme e barba e bigode cor de neve, além de um cajado, nos remetendo a alguns personagens bíblicos. Católico fervoroso, tinha uma confiança infantil e inabalável em Deus. Foi ele, ainda, um profeta por excelência. Eu diria sem medo de exagerar, “O Nostradamus de Massapê”. Registro e catalogo uma das suas profecias, da qual fui testemunha ocular, que aconteceu em Massapê no dia 1º de abril de 1984, ocasião que eu residia em São Paulo e gozava as merecidas férias por onde a parteira “Mãe Tonha” enterrou no monturo o meu cordão umbilical. Abordei-o sob o sol causticante das 11 horas, de posse de uma enxada, arando a terra seca e estorricada no amplo quintal da histórica e centenária casa construída em estilo colonial, que em meados do século XIX abrigou a sede de uma das fazendas de Úrsula Balbina, localizada no bairro Alto da Cadeia (então Alto da Boa Vista). Com capricho, persistência e deveras otimista, ele preparava a terra para plantação de um roçado de agricultura de subsistência (culturas de milho e feijão). A seguir, transcrição do diálogo vazado nos seguintes termos:

- Bom dia, seu Zé Mendes?

- Bom dia! – respondeu o protagonista, elevando o chapéu de palha, em reverência e respeito com a minha pessoa.

- Já se passaram janeiro, fevereiro, 19 de março (dia de São José) e esse inverno que não vem... Hoje, 1º de abril e, sequer, uma gota caiu. O senhor não está trabalhando à toa?

- Não estou não, Ferreirinha – e pela segunda vez tirando o chapéu da cabeça, desta feira em reverência a Deus, emendou, filosofando com uma frase pra lá de profética – “A Justiça Divina tarda, mas não falha; estou esperando a Neta de 74”. E diante da minha incapacidade de interpretação, sem entender o que ele havia dito (piada sobre o dia da mentira ou caduquice?), saí de cena e confesso que alguns meses após, foi que a ficha realmente caiu. Muito embora tardiamente, os nossos irmãos cearenses da região noroeste usufruíram de uma esplendorosa quadra invernosa, com a colheita de uma farta safra de alimentos. Moral da história: é que em 1974 tivemos um grande inverno (o avô); em 1977, outro excelente inverno (o filho) e a boa quadra invernosa de 1984 (a neta). A tão esperada “Neta de 74” (em sentido figurativo), segundo o nosso rezador, filósofo e profeta Zé Mendes – um homem que nunca sentou em um banco de escola, mas digno de ser apresentado como modelo.

Foto de 1984 - Ferreirinha e o curandeiro Zé Mendes

Do livro: Histórias & Causos com Casos & Estórias de Massape – autor: Ferreirinha de Massapê.

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