CAIXÃO DE DEFUNTO
De família
altruística, ao longo de cinco gerações, os Albuquerque de Massapê, que fazem
da política um sacerdócio, têm a satisfação de bem servir aos munícipes,
notadamente os cidadãos desprovidos de bens materiais. Desde tenra adolescência
Jacques Albuquerque decidiu sua opção pelos humildes; na fase adulta, fazendo
da política um trampolim. Quando prefeito de Massapê (1989/1992), o político
massapeense sancionou a lei municipal n. 254 de 1990, emanada do poder
executivo – de combate a miséria e assistência a pobreza, que consiste em doações
oficialmente contabilizadas para a população carente do nosso município, de
tudo (ou quase tudo) que se possa imaginar: dentaduras, óculos de grau,
milheiros de telha e tijolo, sacos de cimento e cal, carradas de areia e barro
Massapê, passagens estaduais e interestaduais e acreditem, até caixão de
defunto. De cunho extremamente assistencialista, o benéfico projeto social, até
então inédito no Brasil, era como se fosse aos dias atuais uma espécie de Bolsa
Família (esmola) do Governo Federal. Contam à boca miúda, que faleceu em plena
quadra invernosa um octogenário acometido de próstata, havia alguns meses
prostrado no fundo da rede da sua alcova, arquejando com uma mão na vela e a
outra na cova, de modo que, o infeliz enfermo despachado por uma competente junta
médica, se resumia em “espírito padecido, coro e osso”. Morre e não morre,
morre e não morre. Como que não morre? Morreu. De família tipicamente tradicional
de pescadores, o de cujus em vida
terrena, paupérrimo, que sobrevivia da pesca artesanal e de subsistência, deixou
prole escadinha, portanto, sem condições de arcar com as despesas do funeral. Seu
filho primogênito, também pescador, foi ao encontro do ilustre prefeito que
prontamente o atendeu, em termos. O conceituado político se justificou alegando
que a cota reservada aos recursos da lei n. 254 de 1990 havia esgotada, e que
somente dali uma semana, ou seja, na virada do mês é que teria verba disponível
em caixa destinada para a compra dos benditos caixões de defunto. Foi então que
o caridoso prefeito, imbuído de profundo sentimento de justiça social e sensibilizado
com a miséria daquela família, sentindo na própria pele a dor alheia, resolveu
doar a sua predileta rede de dormir, de cor vermelha e com varandas brancas, bordadas
com Cabeças de Fita, para servir de funeral à moda antiga nordestina, pendurada
num mastro de madeira bruta e transportada a passos largos nos ombros calejados
de dois voluntários que, via de regra, se revezam alternadamente. Chegando ao modesto
lar desprovido de bens de consumo doméstico, dignos do conforto e bem-estar de
uma família comum (geladeira, TV, fogão a gás, etc.), o humilde rapaz,
consternado, contou o acontecido aos demais membros da família enlutada que entenderam,
se conformaram e até ficaram profundamente agradecidos com o gesto singular, nobre
e solidário do franciscano prefeito, ao doar sua própria rede; mas um entre
eles, o caçula, excelente pescador tal qual o pai, queria porque queria um
caixão de defunto: primeiro porque o falecido (cidadão massapeense que pagava
seus impostos) faria jus ao benefício e segundo; porque o corpo do seu pai seria
depositado em cova; portanto, sem a proteção do caixão, levaria terra na cara,
o que seria uma grande humilhação. Um orgulho besta que fez com que o filho
caçula (que faltava uns parafusos na cachola encefálica), se sentindo iludidamente
ofendido, fosse até ao popular prefeito tomar satisfação. A seguir, trecho da
conversa entre os dois, vazado nos seguintes termos:
- Bom dia amigo! –
recepcionou-o o prefeito, estendendo-lhe a mão, acolhedoramente.
– Bom dia nada! Pra
mim (hic) hoje é um péssimo dia –
desabafou o órfão de pai, completamente desorientado, com fortes evidências de
ter ingerido cachaça serrana (sem água) amarelada com bálsamo e rosário no copo,
vendida pelo Expedito Galinha D’água.
– Aceite os meus mais
sinceros pêsames – consolou-o, o prefeito.
– Meu velho pai
faleceu (hic) e seu corpo não merece
ser enterrado dentro de uma rede; e sim, num caixão defunto. Seu prefeito (hic) me arrume uma solução??? – implorou
aos prantos e barrancos, o pescador chorão.
– Meu amigo, a
solução é a rede que eu doei do fundo do meu coração. Caixão de defunto eu só
vou ter na outra semana...
– Pois seu prefeito,
me assine um vale pra eu comprar (hic)
um fardo de sal grosso, assine???
– Assino... Mas pra
quê tu quer 50 kg de sal grosso de uma lapada só? É para conservar o excesso de
pescado da família???
– Oxent! Num é não senhor. É pra salgar papai até a chegada do caixão.
Do livro: Histórias
& Causos com Casos & Estórias de Massapê – autor: Ferreirinha de
Massapê.
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